A Festa do Bode

A Festa do Bode

Exige-se requinte ao escrever um romance coral. Cada uma das abundantes vozes deve ser manejada com distinção a fim de que revelem ao leitor suas individualidades. Mario Vargas Llosa é meticuloso o suficiente para nos fazer ouvir absortos o que tinham a dizer os dominicanos sob a opressão do ditador Rafael Trujillo, vulgo Bode.

Como não poderia ser diferente, o início de uma história com muitos protagonistas despeja no leitor informações e nomes em velocidade superior ao tempo que se tem para processá-los. O autor não se preocupa com o conforto de quem está lendo, e os diversos personagens são citados intencionalmente às vezes pelo primeiro nome, outras vezes pelo sobrenome, ou apelido carinhoso por seus amigos, e até mesmo pela alcunha difamatória pelos seus inimigos. A compulsão cultural dos castelhanos em batizar seus filhos com nomes compostos também não ajuda. Só um bloquinho de notas com o propósito de identificar quem é quem, poderia auxiliar.

O enredo é multitemporal e utiliza-se de câmbio do plano narrativo para intercalar três linhas de trama que ao se fundirem nos farão descobrir a história recente da República Dominicana, entendendo o contexto ao qual esse período estava envolvido. As sequências de diálogos se misturam com as falas de episódios transcorridos, pois o passado participa simultaneamente com os parcos relatos do tempo vigente.

Esta contínua intercalação de 20 em 20 páginas entre os pontos de vista é eficiente para o magnetismo do livro. Algumas perguntas que martelam nossa cabeça durante a leitura de mais de 450 páginas terão respostas apenas no ensejo. Porém, as interrupções geram anticlímax e a inserção de cliffhangers sempre será malvista como um recurso apelativo vindo do escritor.

Dos retalhos, que representam os pontos de vista aos quais a história é costurada, o maior deles é o próprio Rafael Trujillo. Caracterizado como uma figura vilanesca, manifesta-se sob a personificação de um homem-deus: onipresente e onisciente. O caráter imponente do ditador é o dínamo que movimenta todos os eventos do livro. Sua infalibilidade é desmistificada somente porque o leitor tem acesso ao seu monólogo interno. Os dilemas que revolvem sua cabeça dividem espaço em seus pensamentos com a proposta doentia de testar a fidelidade de seus mais estritos colaboradores; com os enormes problemas políticos que assolam sua querida nação; e com a reconfortante certeza de que ao fim do dia violará mais uma nova virgem escolhida a dedo pelos seus lacaios. Embora não possamos tolerar as atitudes do Generalíssimo, o autor nos faz entender suas motivações.

Mesmo ficando íntimos e compreendendo melhor seus estímulos, não deixamos de sentir o prazer máximo vindo da sua morte, devido ao monstro que foi em vida. Seu falecimento abriu o processo de algo remotamente semelhante à democracia. Já com a sua família é diferente. Enquanto Trujillo às vezes é humanizado, sua família sempre é demonizada com todo o pacote advindo de seus filhos, mulher e irmãos: bebida, dinheiro e sacanagem. Ao nos contar o barbarismo de seus filhos, a mesquinhez de sua esposa e a selvageria de seus irmãos, desaprovados até mesmo pelo próprio tirano, só nos resta a mais abjeta repulsa.

Muitos personagens guardam imensos rancores para com à família Trujillo, sobretudo Urania Cabral, que às vezes parece perder a sanidade ao lembrar das atrocidades perpetuadas pelos facínoras. Ela sabatina seu inválido pai, cúmplice no seu abuso sexual pelo ditador, com perguntas que nunca terão respostas. Fazendo isso, apazigua talvez o peso que essas dúvidas tiveram durante longos 35 anos. Urania e seu pai são o exemplo da destruição individual causada por Trujillo. O efeito psicológico sofrido por Agustín Cabral, vítima das intrigas maquiavélicas de seu bem feitor, se tornou tão desesperador que foi capaz de entregar até mesmo a dignidade de sua filha donzela no intuito de reacender ao antigo status. Agustín Cabral representa o oposto moral dos assassinos do Generalíssimo.

Nos capítulos que alternam entre as perspectivas de cada um dos tiranicidas, suas consternações nos compadecem. Todos os motivos para o pecado final são válidos e nos animamos com a aproximação do derradeiro momento da execução do Bode. Apesar do êxito em por fim à vida do tirano, a prostração de pessoas chave vinculadas ao golpe político impediu que a revolução tomasse forma e livrasse o país de vez do legado maligno. E então mergulhamos no período mais lastimável da história desse país. Milhares de dominicanos, sobretudo os que participaram da conspiração, são encarcerados pelos capangas de Trujillo.

As descrições de torturas lidas no passado pelo leitor serão eclipsadas por essas que ele encontrará no livro de Vargas Llosa. O nível de crueldade a que foram submetidos os heróis extrapola o obnóxio. Não somente as mutilações, as dores físicas inconcebíveis, mas também a desumanidade capaz de quebrar o espírito do mais forte dos homens, como, por exemplo, o pai que superou as impiedosas provas de resistência ao sofrimento carnal, e descobriu que na refeição digna que não tinha havia muito tempo, comeu a carne do seu próprio filho, morto pelos guardas da prisão.

O clima trágico de A Festa do Bode é atenuado pelo tom leve quando nos apresenta as maquinações políticas de um Estado sancionado tentando sobreviver à forte pressão por não ser mais visto com bons olhos pelo antigo padrinho Estados Unidos. Contudo, retoma a seriedade quando Llosa escancara o papel manipulativo da política externa norte-americana, denuncia a conivência de alguns com a corrupção e a aquiescência de outros devido aos perigos inerentes de um sistema estatal imposto sob o medo.

A história dominicana foi manchada por um governo apodrecido do núcleo até a borda. Rafael Trujillo estuprou não somente as dominicanas, as esposas ou as jovens filhas de seus ministros, mas desonrou uma nação inteira, no mais pérfido dos sentidos. As cicatrizes que permaneceram após a queda do regime ainda latejam. É fácil assimilar por que quiseram assassiná-lo, mas faltou ao livro explorar a ótica daqueles que o tinham como ídolo.

Em suma, A Festa do Bode é uma obra que cumpre o que propõe: dar legitimidade à provação que a República Dominicana suportou. Com a adição de ficção histórica ao relato jornalístico, o enredo é humanizado. O autor dissipa com habilidade a névoa que encontramos nos primeiros capítulos, estreitando a teia de acontecimentos até que os três tempos distintos se intercalam e ajudam a contar uma história riquíssima. Talvez, se narrado de maneira linear o livro não tivesse o mesmo impacto que teve.

6 comentários sobre “A Festa do Bode

  1. “…Só um bloquinho de notas com o propósito de identificar quem é quem, poderia auxiliar.”
    Tentei essa técnica e não resultou comigo. 🙂
    É um dos livros que comecei e que por diversas razões ainda não terminei. Vargas Llosa é um excelente escritor, mas nada fácil de ler. Obrigada.

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  2. Gosto de Llosa. Bastante. Mas como todo escritor com obra extensa, às vezes, para mim, ele não clica. Um exemplo foi O heroi discreto, li mas não gostei. Mas em geral gosto muito de seus livros, dele já li: Conversa na catedral (difícil). Todos os seguintes tiveram minha admiração.Pantaleão e as visitadoras, Tia Júlia e o Escrevinhador, Quem matou Palomino Molero? Travessuras da menina má, O sonho do celta. Tia Júlia, já dei mais de 10 vezes de presente e reli recentemente. Vou colocar A festa do bode na minha fila de futuras leituras. Excelente resenha.

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