Malone Morre

Malone Morre

Malone Morre é antes de mais nada pessimista, a morte iminente já é anunciada no despontar do livro. Malone, o sujeito em questão, velho, acometido pela invalidez, incapaz de se deslocar do leito onde definha, tem como única posse, o ócio. O enredo dessa obra de Samuel Beckett é bastante sucinto: o protagonista se propõe a inventar estórias para se distrair da agonia crescente e monotonia até que a morte venha por fim reivindicá-lo.

Malone cria, corrige e recria durante a produção de suas narrativas, imputa comentários de natureza crítica ao próprio trabalho, evidencia os percalços aos quais um autor se depara no processo de criação, sublinha o que melhor encaixa no enredo, no desenvolvimento de um personagem e se debate ao ponto do texto parecer fugir-lhe ao controle.

Projeta-se em seus personagens, indivíduos de espírito estóico, sem vontades que não o perecimento, mentes perturbadas, cuja loucura os torna cômicos, singulares. A autobiografia velada suscita um narrador ora autodiegético, ora heterodiegético.

O autor, Malone, é tão incapaz de saber o que está se passando quanto o leitor. Suas estórias são incompletas e a coerência é sacrificada. A insensatez é tão escandalosa que se chega ao ponto de descartar o protagonista para a concepção de um substituto idiossincrático.

A indecisão também é lugar comum. Ao mesmo instante em que diz ser inútil a descrição da roupa do seu personagem inventado, na frase seguinte dá início a um relatório de três, quatro laudas, explicitando minuciosamente todas as características irrelevantes da vestimenta desse indivíduo.

Outra questão é a prolixidade interminável ao ponto de, por exemplo, escrever páginas e páginas sobre os pormenores na conduta de um homem deitado no chão de barriga para cima enquanto recebe a chuva infindável sem se inquietar (se é que seja possível tal absurdo na escrita), e que depois começa a rolar no solo sem motivo aparente, por mais sem juízo que isso possa soar. Porém, esses contos fluem, visto que possuem algo próximo à linearidade.

Já não se pode dizer o mesmo quando Malone volta a si. Nestes intervalos, mergulha em devaneios, um turbilhão de pensamentos dentro de pensamentos que se arrastam, que se perdem muito facilmente em confusões dissociativas de outras pequenices, sem chegar à lugar algum.

Em meio a incessante ladainha introspectiva, Malone espalha informações relevantes sobre si e o estado em que se encontra. Mas é uma voz duvidosa, fatos importantes não são concretos. Seu passado e presente são reféns da falta de memória. Nem mesmo seu nome é nos apresentado com convicção.

A narrativa evasiva proposta não só por Malone, mas pelo autor Samuel Beckett, traz elementos lúdicos que remetem aos sonhos, onde predomina a acomodação do estranho em contrapartida ao familiar. Veja a visita à Malone prestada pelo homem caricato trajando somente preto e que examina o moribundo enquanto olha impaciente de relance para o relógio, como se indagasse “Por que resiste? Já passa da hora”. O ser em questão pode ser tomado como a representação da Morte.

Malone falha miseravelmente no que se dispõe a fazer: contar quatro estórias sobre quatro personagens distintos. Mesmo com o suposto câmbio de personagem principal e plano de fundo, as duas crônicas criadas são praticamente equivalentes. Com solipsismo imposto involuntariamente ao seu corpo, ele conserva em suas estórias o refugo que o ajuda a enfrentar a decrepitude física com humor negro e inteligência crítica inesperada. As palavras que preenchem seu precioso caderno o fazem ser ouvido, mesmo que ninguém jamais o leia. É o escape, a última chance de conversar com alguém, de se manifestar, de mostrar ao mundo sua situação desesperadora.

Por lhe faltarem objetivos significativos, Malone se apega à míseros pertences como as crianças de poucos meses se agarram aos seus brinquedos, salientando a condição de senilidade ou segunda infância que está vivendo. O momento em que perde seu bastão, o qual manipula o seu domínio, que o alcança à objetos dos quais acha ser dependente, é a parte mais crítica do livro, quando se vê devastado. O caderno de anotações cumpre o papel do que na Psicologia costumam chamar de “objeto de transição”, um totem que representa a passagem do estágio do bebê de extrema dependência e atenção da mãe para uma maior autossuficiência, mesmo que ela seja mínima. No caso do velho Malone o caderno é o objeto de transição para o fim da sua existência, para fazer da morte algo menos psicologicamente doloroso.

Essa implacabilidade também está na representação da sexualidade em Malone Morre. O sexo é inserido ausente de romantismo, em situações incestuosas e perturbadoras, desprovidas de sentimentalismo algum. Como o pai que espera a família dormir para assediar a filha ou os dois idosos que se engalfinham freneticamente para fornicar como animais. São demonstrações cruéis, entretanto, factíveis com a realidade da condição humana.

Esta obra de Samuel Beckett parece vazia de enredo, personagens e até mesmo propósito. Ela se revela sem uma construção de mundo, dificultando o posicionamento do leitor para com a trama. O leitor, na verdade, é reprimido, a ânsia em ver os mistérios esclarecidos nunca é satisfeita. A saída é se ater, procurar relevância apenas nas narrativas criadas por Malone.

A sombra da morte pesa a atmosfera durante todo o percurso do livro. A competência de Malone Morre está em nos colocar frente a frente com a extinção em nosso inconsciente. Beckett concebeu um estudo das consequências do isolamento absoluto ao homem.

10 comentários sobre “Malone Morre

    1. Concordo em cada colocação.
      Beckett escreve despreocupado de se fazer entender, tornando o texto mais rico, fazendo o leitor suar.
      Neste, senti falta do humor peculiar, só encontrei o absurdo, que também me agrada, mas em menor grau.
      Comecei a trilogia por Malone, Murphy e O Inominável me aguardam.

      Obrigado pela contribuição Cunha.

      Saudações.

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  1. Este é um de uma trilogia chamada Trilogia Pós Guerra. Ainda não li. os livros estão a caminho. Mas estou encarregada de ler a trilogia inteira nas p´próximas 3 semanas, para um trabalho sobre o absurdo que estou fazendo em grupo. Gostei de sua resenha. Estou lendo o que posso antes de pegar nos livros…. Vamos ver… Obrigada

    Curtido por 1 pessoa

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