Duna

Duna

Apreciada por mais de uma dezena de milhões de fãs e tido como um dos universos ficcionais mais prestigiados, a série de livros de ficção fantástica Duna se inicia no volume homônimo, escrito pelo americano Frank Herbert na década de 1960.

O plano de fundo é uma guerra política, social e científica intergaláctica entre: poderosas famílias aristocráticas rivais; uma guilda mercantilista de recursos inimagináveis; e o Império, que é uma espécie de Estado detentor do que em tese seriam as rédeas de toda a sociedade desse universo. Em meio a esse turbilhão, Paul da família Atreides, um jovem brilhante, luta pela sobrevivência enquanto se empenha em afastar-se de seu trágico destino prenunciado em um sonho profético.

Todo início de série literária de fantasia é desanimador pela torrente de nomes, lugares e conceitos. É tudo muito nublado. Mas ao final do livro permanece a sensação de que o conteúdo fundamental foi assimilado.

Outro mérito do autor está na caracterização de Arrakis, o planeta onde se passa a odisseia de Paul Atreides. Frank Herbert descreve com criatividade os elementos que compõem o panorama desse planeta. As cores são bem trabalhadas, os símbolos e os sons nos transportam para o cenário do livro. A maneira como construiu os eventos em que aparecem os gigantescos vermes de areia, desperta curiosidade e arrebatamento.

O autor até mesmo compôs hábitos culturais dos nativos desse planeta condizentes com a ambiência árida à qual eles estão sujeitos. A preocupação com a escassez de água é tão severa que há uma tradição de nem ao menos chorar pela morte de um ente querido. Cuspir para alguém sinaliza que se concorda com essa pessoa, pois a saliva doada é umidade corporal desperdiçada, logo é um presente caro a quem recebe.

Aliás, essa fragilidade ecológica do planeta Arrakis passa uma mensagem extremamente atual de alerta com o que as gerações posteriores poderão se defrontar aqui mesmo na Terra caso as providências contra o aquecimento global continuem sendo pospostas. Nessa mesma ideia, há no livro a analogia à uma realidade cujo sistema econômico universal é sistematicamente dependente de uma única commodity controlada por tão poucos, e ao eventual cataclismo acarretado caso essa especiaria se finde ou caia em mãos gananciosas.

O misticismo em Duna tem bastante relevo. Ao contrário do que diria a lógica, nessa sociedade espacial, a religião, abrangente em termos de quantidade, é basilar nas civilizações que se espalharam por todo o universo. As instituições religiosas persistiram, a despeito da ineficiência.

As civilizações são avançadas tecnologicamente, no entanto primitivas no quesito solução de conflitos. Temos rituais messiânicos que envolvem riscos de morte em duelos para decidir desavenças tribais, sem falar em espetáculos com arena de gladiadores para o amusement da alta casta.

Ainda que Paul seja o protagonista, nos é oferecido a perspectiva dos outros personagens. O autor intercala durante a narrativa, os pensamentos de cada um dos coadjuvantes relevantes. Isso não é feito na alternância de capítulos, como vemos em outras séries de livros de fantasia, mas em um simples interpolamento de parágrafos. Portanto a apresentação dessas perspectivas ao leitor é mais dinâmica.

O excesso de diálogos traz fluência à leitura, porém os interlocutores se explicam demais, se entregam em demasia, deixando pouco para a nossa imaginação. Nada fica subentendido. Além de estragar parte da tensão dramática, principalmente em conflitos importantes, quando já sabemos as intensões de cada um envolvido, expostos como livros abertos. O excesso detalhado das informações sacrifica a profundidade das questões e o adensamento dos personagens.

É difícil não comparar com outras séries de livros de fantasia como As Crônicas de Gelo e Fogo ou A Companhia Negra, cujo sucesso se deve aos mistérios que não são explicados de bandeja ao leitor.

O próprio estilo fantástico já evoca para si uma alcunha infantil, superar esse preconceito é tarefa árdua para o autor. O livro não é tão adulto quanto às outras séries citadas, configurando um ponto negativo, contudo não se aproxima das séries infanto juvenis como Jogos Vorazes ou Percy Jackson, o que é algo positivo.

Os personagens pouco memoráveis são mais um problema nessa obra de Herbert. O protagonismo excessivo é muito utilizado, o que torna Paul um personagem pouco humano e realista. Soa mais como uma história de super herói ou a Bíblia que relata a vida de um messias. A imagem do herói super dotado tanto fisiologicamente quanto intelectualmente já está saturada nas ficções, e é por não possuir um personagem assim que As Crônicas de Gelo e Fogo, por exemplo, vai tão bem na aceitação do público contemporâneo.

Para agravar, o Barão Harkonnen, adversário de Paul Atreides, é unidimensional, raso, movido apenas pela mais pura maldade, como um vilão oco de uma produção da Disney. E anunciar desde o início que o pai de Paul será traído e ainda por cima escancarar o nome do traidor, não é uma estratégia assertiva. Ler 300 páginas (quase metade do livro) já sabendo o que vai ocorrer tira parte do prazer da estória. Seria mais gratificante ao leitor tornar esse evento uma fatalidade inesperada, deixando-o curioso em descobrir o executor do atentado.

Não há como falar do livro sem compará-lo com outras séries de fantasia de peso. Assim como é inevitável fazer um paralelo entre o universo de Duna com o nosso mundo real. A esteira da trama é movimentada essencialmente por maquinações políticas. Haja vista a Realpolitik sendo imoderadamente aplicada para se obter qualquer vantagem na disputa por supremacia. O Barão Harkonnen é a personificação do próprio chanceler prussiano Otto von Bismarck, na campanha em conduzir um Harkonnen ao trono do Império.

Arrakis seria nosso Oriente Médio, empregado como objeto de manobras políticas pelas potências detentoras do controle do universo. Os Fremen, nativos de Arrakis, se ressentem pela intrusão das nações que os subjugam há tempos, e enxergam em seu messias, Paul Atreides, o perpetuador da purgação que os livrarão dessa opressão secular. E então temos o espetáculo de uma Guerra nem tão Fria entre os Harkonnens (soviéticos) e os Atreides (americanos/ocidentais).

Paul é o mito salvador dos dilemas mais urgentes, porém é quem liderará a marcha cega de seus seguidores numa jihad que trará consequências desastrosas para o futuro dos povos. Um panorama bastante análogo ao que temos hoje no Brasil.

Há complexidade nesse enredo pululado de intrigas políticas, mistérios e raciocínios científicos que introduzem elementos antropológicos e sociológicos. A complexidade é alcançada não pela densidade do livro, mas pelo seu comprimento. É uma obra extensa esse primeiro volume, e a quantidade de informações transcorridas ao longo da leitura é satisfatoriamente processada.

O livro peca em densidade pela gravidade dos tópicos negativos aqui discorridos, o que seria o caixão para o primeiro volume de uma pretensiosa série de fantasia. Entretanto o conjunto dos pontos positivos assimilado à excelente escrita de Frank Herbert, à mitologia abrangente e ao horizonte extraplanetário, salvam a obra e motivam os leitores a não se darem por vencidos enquanto não atingirem a página final e até mesmo se enveredarem pelas continuações.

32 comentários sobre “Duna

  1. Sou louca para conhecer essa série, mas confesso que seus pontos negativos me deixaram levemente desmotivada, rs. Claro que a experiência de leitura é diferente para cada um, mas com certeza esses pontos também me deixarão com dificuldades pra terminar a leitura – melhor aguardar para apreciá-la no momento oportuno.
    Segue na minha lista de desejados não só por ser um clássico, mas pelas belas edições que estão sendo relançadas.
    Maravilhosa sua resenha, como sempre! Adorei os paralelos com nossa realidade.
    Parabéns pela excelente análise, Brunno!
    Abraços!

    Curtido por 4 pessoas

    1. Olá Andressa,
      Mais uma vez tenho que agradecer pelos elogios e por sua contribuição!
      Quanto ao livro, acho que não deve postegar sua leitura. Os pontos positivos acabam por suplantar os negativos.
      Sem falar que sairá um filme desse primeiro volume muito bem produzido e com ótimos atores, acredito que no ano que vem já.
      Um abraço!

      Curtido por 1 pessoa

  2. Achei interessante isso que você chamou de perspectivas de personagens diferentes através de um “interpolamento de parágrafos”. Não me lembro de ter lido algum livro com nada parecido.
    Sinceramente, como já vi o livro por aí, e ele é realmente bem extenso, não fiquei curiosa o suficiente para ler o livro, embora tenha adorado a sua resenha, como sempre, muito sincera e bem escrita, mas pelo menos agora eu já sei um pouco mais sobre ele, além do fato de ser um catatau.

    Curtido por 4 pessoas

    1. Olá Isa,
      Confesso que é a primeira vez que me deparo com essa forma peculiar de narrativa. No início estranha um pouco, mas conforme o enredo progride ela se torna mais familiar.
      Peço que ainda não abandone a ideia de ler o livro. É um universo que promete muito para os livros subsequentes. Ainda mais que vão lançar o filme no ano que vem.
      E mais uma vez tenho que agradecer pelas suas palavras sempre muito bem vindas!
      Um abraço!

      Curtido por 2 pessoas

  3. Eu sou péssima pra falar de Duna pois é meu livro favorito. Entendo todos os seus pontos negativos, mas eu acho relevante que, como foi escrito em 1964, ainda não haviam alguns dos modismos das séries fantásticas de hoje, como deixar algumas coisas mais misteriosas, e ainda tem essa ideia de vilão não tão complexo, que é apenas, como você mesmo disse, a personificação do mal.
    Mas gostei muito da sua resenha, espero que goste da série, os livros só vão melhorando.
    Dica: não veja o filme, veja a série que foi lançada em 2001.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Interessante os pontos que você colocou. Talvez naquela época as exigências do público eram outras.
      Sim, com certeza continuarei lendo os volumes seguintes.
      Vou procurar saber sobre essa série também. Tomara que ela não tenha muito da história dos outros livros.

      Ah muito obrigado pela excelente participação, por ter gostado da resenha e pelas dicas.
      Um abraço!

      Curtido por 1 pessoa

  4. Olá Brunno!
    Obrigada por este texto sobre a Duna – escreves lindamente. Tornas interessante um livro que não consegui terminar, pertenço ao grupo dos vencidos, como dizes … A planura das personagens e o excesso exaustivo de explicações terminaram comigo.

    Bom trabalho! Escreve muito!
    pondipat

    Curtido por 2 pessoas

Deixe um comentário