O Marido Dela

O Marido Dela

Apesar do extremo reconhecimento na 2ª Arte, chegando a ser considerado um dos melhores autores do século anterior, Luigi Pirandello era um literato versátil que se destacou não somente no teatro, mas também escrevendo romances, contos e poesias. O Marido Dela é uma obra pouco comentada desse gênio italiano, por motivos únicos, contudo é tão potente em externar as nuances da psicologia humana quanto suas outras obras mais populares.

No enredo temos um distinto drama matrimonial entre uma talentosa escritora em ascensão chamada Silvia Roncella, e seu exaustivo esposo-agente literário, Giustino Boggiolo, empenhado em elevar os proventos financeiros do casal e incapaz de perceber os estragos acarretados por sua conduta. De um início divertido, até mesmo quixotesco, a narrativa desvia o rumo para conflitos, descontentamentos e angústias profundas.

A capital Roma é o palco e o seu círculo cultural é o elenco, com proeminentes artistas, todos supérfluos como uma corte inútil de um monarca. Boêmios eruditos. Um antro em que impera a vaidade, um verdadeiro circo de mesquinhez e egos indecorosos que se deixam levar pela pura falsidade. Cada atitude é consequência do desejo de elogios. A reverência à alguém é nada mais que garantir a sua própria exaltação advinda do colega antes enaltecido. Por isso os personagens são extremamente caricatos e mais do que tudo engraçados, devido ao absurdo da egolatria e vestimentas excêntricas.

No centro do furacão e das atenções está a tímida Silvia Roncella, que desponta prestigiada por seus recentes roteiros para teatro. Nessa sociedade, começa a pontilhar a emancipação das mulheres à figura do homem e esse talvez seja um dos principais pretextos que acarretarão na conflituosa vida privada de Silvia e Giustino.

Roncella pouco se importa com a notoriedade ou a fortuna crescente. Para ela a importância de seu trabalho está em se expressar. O prestígio é totalmente dispensável. E para desespero de Giustino ela é alheia à reuniões sociais, o que segundo ele são compromissos essenciais para a divulgação das obras.

A despeito de Silvia Roncella ser, sem sombra de dúvidas, o personagem mais complexo da trama, o real objeto de análise aqui é o seu marido, como denuncia o título do livro.

Para Giustino Boggiolo o que importa são os frutos originados pelo sucesso. A arte nada significa para ele. O dinheiro nem tanto, mas sim, o resultado saudável devido aos seus esforços de divulgação massiva pela mídia, divulgação no exterior, contratos assinados de peças, recrutamento das companhias que encenarão o espetáculo, ensaios desgastantes com os atores, acordos com editoras de livros que ainda nem foram escritos por sua esposa, e por aí vai. Realizando cada tarefa como um agente exemplar. Sua eficiência é tão grande que põe na cabeça que a reputação da esposa não se deve à qualidade dos trabalhos dela, e sim aos esforços dele como o agente de produção.

Boggiolo parece se dar conta de ser motivo de chacota em todo meio literário pela forma como se porta e por essa imposição doentia à sua esposa. Se diz indiferente à zombaria, porém é vaidoso acima de qualquer outro atributo. Pela falta de compreensão da aflição que suas atitudes causam na amada, pagará muito caro, sendo dedicado a ele somente a repulsa de Silvia.

Não há lugar na estória para o filho dos dois, Vittorino. A atenção ao menino é tão diminuta que dá a entender que ele nunca teve o amor de sua mãe, e sobretudo de seu pai. Sua morte prematura, que poderia ser o artifício que reuniria Silvia e Giustino, ao menos na ótica do marido, acarreta no afastamento definitivo dos dois, particularmente pela rejeição da mulher.

O Marido Dela atinge sua enorme relevância ao perscrutar o relacionamento fragilizado. Penetra naquela relação que quem está de fora, a olhos nus,  não consegue enxergar tamanho desgaste. A ferrugem presente no alvorecer desse casamento corrói até se consumar na ruptura definitiva entre os cônjuges.

Pirandello aborda de forma sublime as vicissitudes da coexistência entre casal em que ambos sofrem profundamente. Os ressentimentos vão sendo talhados ao longo da convivência de anos de desavenças. São explanações verossímeis as que o autor recorre, quase filosóficas, de tão bem apuradas à essência do comportamental humano. Pequenices narcisistas arraigadas na psique do indivíduo comum.

Após a leitura de O Marido Dela, revigora a ideia de que a Literatura foi a antecessora que diagnosticava a introspecção humana. O cabo-guia do que temos hoje consolidado na Psicologia.

É uma pena que o livro tenha tido as vendas interrompidas logo após ser publicado em 1911. Ainda mais sendo o próprio autor quem exigiu. Na obra há um estigma. Grazia Deledda, uma jovem escritora italiana da época e Nobel de Literatura de 1926, reconheceu-se na personagem de Silvia Roncella. Desde a postura anti social aos detalhes íntimos que desconfiou com firmeza terem sido informados por uma pessoa próxima a ela, mais provável o seu marido.

O efeito nocivo nessa jovem a fez se recluir em sua própria casa, afastando-se do mundo exterior. Tal fato assombrou Pirandello, que evitou até o limite a publicação de novas edições do livro. Com a morte do autor, O Marido Dela passou a ser reeditado, já que não havia mais quem quisesse evitá-lo.

Esse é mais um título que compreende as muitas assinaturas peculiares do italiano. O acaso circunstancial, assim como o maquinário do teatro exposto, são lugares comum nos trabalhos de Pirandello. E aqui também executa o que sempre defendeu: nos tempos modernos só é possível alcançar a tragédia através de vias humorísticas.

21 comentários sobre “O Marido Dela

    1. Pirandello é o que tem de melhor na literatura italiana.
      ´Para conhecer mais sobre a Itália indico também a Tetralogia Napolitana da Elena Ferrante, que é uma autora contemporânea.
      Essa série de livros está arrebatando muita gente que se entrega a ela, inclusive eu.
      Ano passado a HBO iniciou um seriado baseado nessa obra.

      Um abraço!

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  1. Olá Brunno!
    Desculpa chegar tão tarde a este texto.
    Do Pirandello, li um livrinho que oscila, de facto, entre a tragédia e a comédia chamado “Um ninguém cem mil”. Esta tua última frase “E aqui também executa o que sempre defendeu: nos tempos modernos só é possível alcançar a tragédia através de vias humorísticas.” descreve totalmente o Luigi.

    Como sempre, é um gosto ler-te.

    Curtido por 1 pessoa

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